o calor dentro daquela loja estava insuportável
mas ela adorava sentir o suor escorrer pelas costas
ali entre paetês e purpurinas ela reinava linda mesmo ensopada
a casa Turuna era um de seus esconderijos, um de seus paraísos
tudo era convite, leques, pulseiras, flores de plástico
ela colhia adornos mesmo sem saber onde iam adornar
isso era seu vício, um deles é claro!
durante o ano seus dedos longos
e decorados por anéis prateados em tamanho monumental
vasculhavam os escondidos do Saara
seus olhos desvendavam os segredos da rua Buenos Aires
tecidos, passamanarias, rendas
tesouros que ela ia guardando
inflando dentro dela e das coisas dela
não havia mafuá esquecido
o mais distante era sempre ali e ela conhecia
Seus enfeites, mesmo os mais improváveis
podiam a qualquer momento servir para um acaso
ou um caso e até no caso de...
todos os dias ela se preparava para uma festa
a maior de todas, a festa pagã
aquela que a cada batida do surdo
queimava seus preceitos mais íntimos
ah, e esses ela tinha vários, de vários tons
e combinava todos nas platinelas dos pandeiros
e no toque dos tamborins de sua bateria
e assim todos num equilíbrio perfeito
cabiam em seus relicários
espalhados pelo chão da sua casa
Oxum, Nossa Senhora, Escrava Anastácia
entre velas, espelhos, oferendas e os Arcanos do Tarô
naquele dia causticante em que o chão fervia
ela decidiu enfim sua fantasia
dava pra sentir pelo seu jeito de andar
no asfalto da avenida Passos
a intimidade dela com a pista
e depois então de ter resolvido as cores
o rodado da saia e as fitas
ela parecia evoluir
coisa de quem sabe como agradar
com sua felicidade estampada num sorriso
artista...
de volta ao ar condicionado
ela coloria o cinza daquele lugar hermético e liso
ela, suas cores e luzes criavam cantos
e reentrâncias onde só se permitia o reto
ali naquele lugar selado ela sentia seu tempo parado
e se amparava na dinâmica de seus números e letras
e ela guardava, anotava, escondia
e dissertava nas páginas de suas desmedidas cadernetas
seus dias grifados, marcados
encontros, desencontros, doutores e estórias de seus amores
sublinhava também seus dias de graças e farsas
os de deleite e os dementes também
ela anotava tudo
suprimentos
medicamentos
argumentos pra vencer mais um dia
longe do lamento da cuíca...
ali naquele lugar de mármore
cada minuto seu tinha decisão envolvida
tinha carga para todos os lados
trabalho e rotina
então ela criava um vão de segurança
uma distância vital que lhe equilibrava
e lhe protegia entre a suas decisões exatas
e a roda da sua saia de sua fantasia
nos dias mais difíceis de suportar as geleiras e a solidão
seus pensamentos eram vadios
profanos e se perdiam entre lantejoulas e lamês...
naquela noite ela saiu do trabalho
e resolveu voltar para casa pelo Aterro do Flamengo
queria tempo pra pensar em panos, miçangas e orgulhos.
queria ver o mar e saldar sua rainha Iemanjá...
chegou em casa olhou pro Cristo sobre sua cabeça e sorriu
subiu e naquela noite nem dormiu
passou as horas entre agulhas e linhas construindo
bordando sua fantasia
aquela que em poucos dias ia desenhar círculos no ar
relembrou antigos carnavais
e contraditoriamente entre um gole de vinho
e os acordes da material girl
ela pensava e se deliciava no pop de seu borderline...
para ela estes momentos eram místicos
espiritualmente alegóricos, como os carros de seu bloco
alguns eram como altares
e ela devota, dedicava à eles algumas alegrias profundas
madrugada e ela ainda acordada terminou sua veste, seu capricho
e vendo o sol aparecendo entre as árvores do Jardim Botânico
cantarolou o samba já decorado e preparou um café forte
ela precisava de excitação e cafeína em grandes quantidades
para aguentar o dia do ensaio geral até o final
e nesse dia ela se esbaldou e levantou a poeira do chão da quadra
revelando partes de sua saia rodada
pronto ela estava preparada
entregue aos prazeres do corpo em suas danças
em seus movimentos quase lascivos
que desprendiam olhares de todos
ela bailarina urbana portando o estandarte
poderosa de ser ela a escolhida
e a única repleta de privilégios...
e o dia do desfile chegou!
domingo
concentração
batia forte seu coração
seu corpo tremia com a exaltação do samba
ela sentia nela o grito das caixas de guerra
e a resposta dos repiques
não havia som que ela não distinguisse
todos faziam parte em seus sentidos
Ipanema
e na rua inundada de foliões
ela mergulhou em seu melhor personagem
e ali entre ela e a eternidade só havia a felicidade
de rodopiar sentindo o suor escorrer pelas costas
e o prazer de fazer rodar
a roda da saia rodada da porta-bandeira....
para Cláudia Costa, a mais linda das porta-bandeiras - Simpatia é Quase Amor - escrito em algum fevereiro dos anos 2000 - foto: a porta-bandeira