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de como perdemos anéis e isqueiros

era tarde, a noite tinha sido longa, vinho, cigarros e batom. já dava para imaginar o dia seguinte de ressaca e ainda precisava digerir uma centena de palavras desconexas e anorexias - os vômitos de uma noite de verão! então ela entrou no toilette, olhou no espelho e desistiu na hora de retocar a maquiagem preferiu só lavar as mãos e a água fria quase a despertou e por pouco ela não partiu, mas era tarde e ela precisava ir.


antes de sair ela olhou mais uma vez no espelho e dessa vez por um longo momento. inconscientemente ela abriu a bolsa procurou um cigarro e acendeu com aquele zippo prateado que refletiu a luz branca do toucador em seus olhos negros e ela ficou ali parada olhando e deixando a fumaça rodear seu rosto como uma neblina. o que será que havia naquele monte de pensamentos que refletia cinzas no espelho? depois daquele longo momento ela sorriu como quem soubesse de tudo que ia fazer pelo resto da vida. jogou o cigarro na pia, abriu a porta e saiu. atravessou a sala sombria, deserta, escutou a última frase da canção que tocava no quarto iluminado pelos candelabros de barro de guadalajara.


'que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar’. ¹


jogou as chaves da porta na cadeira barcelona que ela amava, meteu a mão na maçaneta, olhou para trás e ainda pensou em dizer um tchau redondo e preciso, mas não pode, bateu a porta, ganhou a rua e se foi. no caminho, que era longo, ela foi abandonando não só um monte de sonhos, mas também suas canetas coloridas, suas calcinhas de algodão, seus beijos, seus anseios, suas mousses de maracujá, suas caixas de marchetaria onde guardava suas imitações de turmalina e seus anéis de prata peruana e aí sentiu falta do mais querido aquele com a rosa incrustada difícil de achar... ela tinha esquecido no lavabo do toilette e não ia poder voltar para pegar.


a madrugada foi passando e ela foi se desvencilhando de uma porção de prazeres profundos. nem todos iam fazer falta e alguns já tinham vazado demais.

ela lembrava dos braços, dos abraços, dos lençóis amarelos, do ventilador de teto e do medo que às vezes sentia dele cair sobre a cama, sobre elas. ela lembrava de coisas tão espalhadas, tão desesperadas, tão banais e no caminho, que era longo o dia foi chegando, lilás, laranja, entre montanhas misturado nas roupas penduradas em varais de alumínio, nos quintais pós-modernos, entre o sono da gente das marquises, dos que não têm dia.


manhã e ela ainda não havia chegado, era longo seu caminho e ela nunca havia terminado, sempre ia até o meio e voltava porque sentia que amava e não podia partir. sempre esperava para ver se a vida mudava se um sonho só bastava, mas não bastou.

e agora lá estava ela, quase distante, quase chegando. parou para tomar um café, sorriu para o garoto do jornal, pediu uma média com pão francês e manteiga. comeu e depois se sentou para ouvir os barulhos da vida começando bem cedinho, pegou o cigarro, mas não pode acendê-lo tinha deixado o isqueiro no toilette junto ao anel e nem valia a pena voltar.


aí ela se levantou, atravessou a pequena rua de mão inglesa, sem qualquer cuidado sem nenhuma atenção, respirou fundo e ao fundo na sua frente exuberante e azulada a baía de guanabara pronta para realizar todos os desejos, a cidade maravilhosa repleta de segredos e respostas pronta para aliviar e aliciar desde aqueles que precisam de sal para conservar amores quase apodrecidos, até aqueles que dependem de sol para alimentar amores mundanos e vadios. então ela pensou que de repente mesmo diante de tudo que nela estava ausente, mesmo sem ainda ter chegado ao seu destino, mesmo sem ter um presente, mesmo assim o dia havia começado bem.


¹ Lhasa De Sela - El Desierto

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